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Pedra Bela,04/09/2025

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Maude Salazar

Anatomia do Delírio: a mentira e a farsa orquestrada pela fé

Um país incendiado por mentiras que rezam, comandam e lucram


Anatomia do Delírio: a mentira e a farsa orquestrada pela fé

Anatomia do Delírio: a mentira e a farsa orquestrada pela fé
Por Maude Salazar

Subtítulo:
Um país incendiado por mentiras que rezam, comandam e lucram

O quase fim do mundo no Brasil não chegou com trombetas celestes. Chegou com lives.
Não caiu do céu. Foi escavado com método, memes e manipulação.

O Apocalipse dos Trópicos não é profecia bíblica. É um retrato documental do que já ardeu.
Ardeu em nome de Deus, da família, da pátria e, sobretudo, do lucro e do poder sem escrúpulos.

Mas não ardeu tudo.
Ainda não.
Foi por pouco.
Muito pouco.
Um quase apocalipse.

E o que faltou é justamente o que ainda nos resta.

O documentário dirigido por Petra Costa e Alessandra Orofino não traz novidades para quem viveu os últimos anos com lucidez e vergonha na cara. Mas ainda assim, choca. Não pelo inédito, mas pela brutalidade da repetição. É como revisitar a cena de um crime sabendo que o assassino continua solto, e aplaudido.

A obra escancara como a religião foi instrumentalizada, prostituída em púlpitos onde o nome de Cristo virou biombo para o discurso de ódio.
Transformaram o apocalipse em estratégia política.
Venderam o medo como plano de governo.

Esse projeto de poder não surgiu do nada. Foi ensaiado. Articulado. Orquestrado.
E teve seus maestros.

Silas Malafaia é um deles. Grita seu messianismo histérico com a bíblia numa mão e a sede de poder na outra.
Não quer o Reino dos Céus. Quer o Congresso, a mídia, o voto fácil.

Outros seguem o mesmo roteiro. Alimentam-se do ódio ao diferente. Erguem a cruz como arma.
Pregam medo. Não fé.
E onde há medo, há controle.

Esse movimento que hoje berra em púlpitos e redes não nasceu ontem. Começou com um grupo americano chamado The Family, que durante a ditadura veio ao Brasil sob o pretexto de ensinar inglês a congressistas. O que trouxeram, na prática, foi influência política e uma teologia estratégica importada direto da Casa Branca.

Missionários, seminários e militares se alinharam entre 1964 e 1985. O resultado foi uma agenda mista de anticomunismo, controle e fundamentalismo disfarçado de espiritualidade.

No centro desse delírio, três palavras foram erguidas como ídolos de barro: Deus, Pátria e Família.
Não como valores, mas como armadilhas semânticas.
Não como fé, mas como farsa.

Foram esvaziadas de sentido, empalhadas com medo, recheadas de comando.
Tornaram-se gatilhos psíquicos de massa.
Foram usadas para suspender o pensamento e ativar a obediência cega.

Deus virou slogan.
Pátria, grife de ditador.
Família, moral de conveniência.

Quem questiona é inimigo.
Quem pensa, herege.
Quem sente, fraco.

Essa trinca simbólica sustentou outros delírios históricos.
Na Alemanha nazista, Hitler usou a mesma lógica com outra estética.
Deutschland über alles - Alemanha acima de tudo - foi o início do hino e o fim da razão.

No Brasil, a cópia foi entregue com sotaque evangélico e fundo de WhatsApp: Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.

Mas não era prece. Era programação neurológica.
Repetida em alto-falante, bordada em camiseta, tatuada em discurso.
Distribuída em vídeos, stories, cultos, lives e cultos que pareciam comícios.

O “Deus” deles não era compassivo. Era gerente de guerra.
O “Brasil” deles não incluía o povo. Incluía o lucro.
A “família” deles excluía todas as outras formas de amar.

Substituíram o Evangelho pela planilha.
O altar virou palanque.
O púlpito, um cabo eleitoral.

A cruz foi empunhada como arma.
A Bíblia, usada como escudo contra o espelho.

E enquanto gritavam "salvação", o país sangrava.
Sangrava nas favelas, nos terreiros, nas aldeias, nos corpos dissidentes, nas matas incendiadas.

A fé foi cooptada.
O sagrado, explorado.
A religião virou empresa, balcão de favores, chancela de violência.

Não se tratava mais de crença.
Era estratégia.
Era projeto de dominação com verniz espiritual.

E o silêncio cúmplice de muitos só ajudou a orquestra afinar a mentira.
Até que tudo parecia normal.
Parecia inevitável.
Parecia “de Deus”.

Mas era só poder com fantasia de fé.

Não explodiu em uma tarde. Foi se infiltrando como veneno digital, oração distorcida e decreto disfarçado.

Primeiro, nas piadas. Depois, nas fake news. Por fim, nas leis.

Veio com vozes que gritavam “liberdade” enquanto pediam censura.
Falavam em pátria livre, mas batiam continência pra miliciano.
Defendiam a família, mas apoiavam quem explodia lares com violência.
Clamavam contra a doutrinação, enquanto catequizavam crianças com cartilhas armamentistas e versículos fora de contexto.

Atacaram livros. Exposições. Professores.
Chamaram arte de perversão.
Chamaram diversidade de ameaça.
Chamaram educação crítica de “marxismo cultural”.

Criaram o espantalho do “kit gay” - uma farsa grotesca vendida como verdade.
Perseguiram educadores por falarem de gênero.
Censuraram espetáculos, pinturas, corpos.
Baniram peças teatrais que falavam de amor entre iguais.
Demonizaram a cultura e chamaram isso de moralização.

Queriam uma escola sem partido, mas com capelão militar.
Queriam um Estado laico, mas ungido no altar de pastores de gabinete.
Queriam uma imprensa livre, desde que domesticada.

O grito de “liberdade” era só disfarce.
Liberdade pra vender ódio, empacotado como fé.
Liberdade pra mentir, sem responder por nada.
Liberdade pra ameaçar, excluir, silenciar.

A democracia virou farsa.
A fé virou moeda.
A verdade virou inimiga.


O mérito incômodo do documentário é lembrar que o apocalipse não é um evento. É um processo.
Começa com pequenas concessões.
Com risadinhas cúmplices.
Com o "não é bem assim".

E quando vemos, o absurdo já virou norma.

Assistir O Apocalipse dos Trópicos é encarar o espelho rachado de um país que não quis se olhar.
Agora, a imagem que volta é feita de cinismo, ignorância e oportunismo em alta definição.

A pergunta não é mais como deixamos isso acontecer.
Essa já sabemos.


A pergunta é:
Quem vai ter coragem de desdizer a mentira?
Quem vai escutar depois do grito?
Quem vai cantar depois da fumaça?

Porque se há antídoto para o apocalipse, ele não virá com espada.
Virá com escuta.
Com consciência.
Com verdade.

E talvez, só talvez, uma nova voz nasça desse silêncio.



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