Maude Salazar

A VIRTUDE QUE ABANDONAMOS NAS URNAS
por que continuamos elegendo aquilo que evitamos pensar

A VIRTUDE QUE ABANDONAMOS NAS URNAS
(ou: por que continuamos elegendo aquilo que evitamos pensar)
por Maúde Salazar
EPÍGRAFE
Antes de tudo, é preciso lembrar o que significa escolher.
Votar não é só um direito.
É uma responsabilidade espiritual, ética, coletiva.
Porque, gostemos ou não, todos os dias viveremos as consequências do que foi decidido.
No preço do pão.
Na falta de remédio.
No tombo do professor desamparado.
Na bala que atinge o menino preto.
Na fila do hospital.
No riso abafado da mulher com medo de ser mulher.
Votar com ignorância é praticar crueldade com quem não tem escolha.
É decretar a dor do outro em nome da própria cegueira.
O Brasil adoece por uma ferida invisível: confundimos competência com carisma, autoridade com autopromoção, política com espetáculo. E, pior, esquecemos que virtude ainda importa.
Na filosofia clássica, política e ética não se divorciavam. Em A República, Platão sonhou com um governo regido por filósofos, não por vaidade, mas porque só quem conhece a verdade é capaz de guiar com justiça. Para ele, o governante deveria ser um amante do Bem, não do poder.
Mas nós, filhos da pós-verdade, órfãos de ideais, nos tornamos cínicos. Rimos de quem fala em ética na política. Dizemos que isso é utopia. E votamos com o fígado. Com o meme. Com a indignação curta de um story mal digerido.
Votamos com raiva, mas não com reflexão. Com medo, mas não com memória. Com pressa, mas não com projeto.
Votar não é apenas apertar números em uma urna. É selar um contrato invisível com o futuro. É decidir qual país queremos atravessar, e com quem. É escolher o tom das leis que nos governarão, os rostos que ocuparão os palcos do poder, as vozes que falarão em nosso nome, ainda que sem nos conhecer.
Cada voto é um espelho. Cada ausência, uma permissão.
Votar é um ato simbólico profundo. Não escolhemos apenas uma pessoa. Escolhemos um conjunto de valores, um modo de existir em sociedade. Elegemos o tipo de violência que será normalizada. O tipo de corpo que será protegido. O tipo de verdade que será contada.
Continuamos elegendo aquilo que evitamos pensar.
Evitamos pensar sobre racismo estrutural. E elegemos quem o nega.
Evitamos pensar sobre desigualdade. E elegemos quem lucra com ela.
Evitamos pensar sobre violência. E elegemos quem promete mais bala.
Evitamos pensar sobre nossos próprios privilégios. E elegemos quem garante que continuem intactos.
Evitamos pensar, e o voto vira descarga.
Votamos contra alguém, nunca por algo.
Elegemos o ressentimento, a caricatura, o castigo.
Porque dá trabalho pensar. Dá vertigem.
Pensar exige ver o próprio reflexo.
E, às vezes, o reflexo é assustador demais para encarar.
Mas o que você evita pensar, se elege.
Se elege em silêncio. Se acomoda. Se infiltra.
E governa você de dentro pra fora.
Porque o inconsciente também vota.
Mas quem somos nós, afinal?
Somos o povo que lota estádio, mas esvazia assembleia. Que entende as regras do campeonato, mas não lê a Constituição. Que se orgulha de ter fé em Deus, enquanto pisa no próximo. Que se emociona com novela, mas zomba de quem defende direitos humanos.
Somos o país que chora com a mocinha da série, mas aplaude o estupro da vizinha, desde que ela não se dê ao respeito.
Somos herdeiros de um silêncio colonial que ensinou a obedecer antes de pensar. Filhos de uma história contada pelos vencedores. E os vencedores, quase sempre, estavam armados.
Dizemos que queremos justiça, mas gritamos por vingança. Dizemos que queremos paz, mas votamos em quem promete guerra. Dizemos que somos contra a corrupção, mas topamos uma cesta básica em troca de voto. Dizemos que somos cristãos, mas esquecemos que Cristo foi preso, torturado e assassinado por um Estado que não suportava sua ética.
Nossos ideais estão confusos. Queremos liberdade, mas sem responsabilidade. Queremos progresso, mas sem equidade. Queremos que tudo mude, desde que não nos custe nada. Queremos líderes honestos, mas não suportamos a frustração de ter que escolher entre o possível e o ideal.
Nos olhamos no espelho e não reconhecemos a própria omissão. E então culpamos o espelho. Culpamos o sistema. Culpamos tudo. Menos a própria escolha.
Mas o espelho só reflete. E a política é esse espelho coletivo onde cada rosto vota, mesmo em silêncio. Mesmo em branco.
Somos o povo que diz que não gosta de política e depois se pergunta por que tudo está uma bagunça.
A verdade é dura: o país que temos é o país que permitimos. O Congresso que temos é o retrato das escolhas que fizemos, ou da escolha que deixamos que outros fizessem por nós.
Quer mudança? Então não basta chorar depois da apuração. Tem que pensar antes. Tem que escutar o que a raiva tenta esconder. Tem que saber quem é você no espelho da política. Porque se você não sabe, alguém saberá por você. E usará seu voto contra você. E dirá que foi você quem pediu.
Aristóteles dizia que a política era a mais nobre das artes porque tratava do bem comum. Ele acreditava na excelência do caráter como base da vida em comunidade. Chamava isso de areté: a virtude ativa, a realização plena do que se é. Para ele, um bom político deveria ser um cidadão exemplar elevado à sua potência ética máxima.
Maquiavel, por outro lado, alertava que o poder não pertence aos justos, mas aos astutos. E sem lucidez, vira ruína. Ele não recomendava a maldade. Apenas mostrava que o poder sem ética apodrece.
Hoje estamos nesse cruzamento perverso. Nem idealistas como Platão. Nem íntegros como Aristóteles. Nem lúcidos como Maquiavel. Elegemos influenciadores. Idólatras. Cúmplices de um cinismo coletivo onde ética virou papo de otário.
Mas ética não é frescura. É sobrevivência espiritual da sociedade. Como disse Lúcia Helena Galvão, se não exigimos virtude de quem nos governa, então somos cúmplices da ruína. Porque a verdadeira política nasce da alma, não da propaganda.
Voltamos às urnas a cada dois anos, mas a decadência é diária. E cada voto mal pensado é um pacto assinado com a própria ignorância. A democracia sem discernimento é apenas um sorteio onde vence quem grita mais alto, não quem pensa melhor.
Não é preciso ser filósofo para votar com consciência. Basta lembrar que o poder, nas mãos erradas, não é só inútil. É destrutivo. E que caráter não se improvisa. Se você não exige virtude dos seus líderes, você está pedindo para ser governado pelo que há de pior em si mesmo.
A política começa no espelho. E a virtude também.
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