Maude Salazar

O inferno começa com uma mentira dita em nome de Deus

O inferno começa com uma mentira dita em nome de Deus
O inferno não é um lugar. É um sintoma.
Não se acende ao pé de um abismo. Se acende dentro, quando uma verdade é calada para que a alma caiba numa doutrina.
É quando o desejo precisa ser expulso do templo paraque a oração continue limpa.
É quando o corpo, ainda quente de vida, aprende a se odiar diante do espelho porque disseram que ali mora o pecado.
É quando o amor vira um desvio, o prazer vira castigo e a fé se torna um teatro de repetições.
Esse inferno não tem chifres. Tem regras.
Não grita. Sussurra em tom de culpa.
Não queima por fora. Corrói por dentro.
Na linguagem da psicanálise, esse é o recalque inaugural. O pacto com a castração simbólica feito não por amor ao Outro, mas por medo do castigo.
A criança aprende a negar o que sente para ser amada por quem exige pureza.
O adulto segue carregando esse script, disfarçado de santidade.
Esse inferno é um lugar psíquico.
Uma masmorra interna onde o desejo é trancado a sete chaves e batizado de tentação.3
Onde o gozo é negado para que o sujeito permaneça obediente, domesticado,moralmente aceito, espiritualmente vazio.
E então surgem os sintomas.
A alma cinde.
O corpo adoece.
O amor implode.
A verdade vira eco.
A teologia do medo produz fantasmas, não fiéis.
E são esses fantasmas que circulam pelos cultos. Repetem versículos, mas nãosabem mais escutar a si mesmos.
São vozes desabitadas, corpos vazios, moldados para obedecer.
Corpos que não dançam para Deus, nem para ninguém.
Corpos que não dançam. Ponto.
Lacan dizia que o espelho funda o eu. Mas o que acontecequando o espelho é quebrado por dentro?
Quando a imagem que retorna é moldada pela culpa e não pela inteireza?
Quando só se vê no reflexo aquilo que a moral ensinou a odiar?
A religião que mata o desejo mata também o sujeito.
E então se perpetua a mentira mais cruel de todas. Ade que Deus prefere uma alma mutilada a uma alma inteira.
Mas não há tridente que fira mais do que a vergonhaensinada a uma criança que só queria amar.
Não há fogo eterno mais ardente do que a culpa implantada no corpo de quem aprendeua ter nojo da própria pele.
O inferno é esse. O hoje que não se vive.
O amor que não se ousa.
O corpo que não se escuta.
A verdade que se enterra viva para caber na fé do outro.
Nem toda mão que segura a Bíblia sustenta uma almaviva.
Às vezes, é só um escudo contra o espelho.
E enquanto houver pavor do espelho, não haverárevelação divina. Só encenação e penitência.
Deus não se revela a quem mente para si.
Porque a presença divina não desce sobre disfarces, nem se deixa conjurar porpalavras bem decoradas.
Apenas o vazio responde onde a alma se esconde.
A fé verdadeira começa quando a mentira é deposta doaltar.
Quando o corpo volta a ser templo.
Quando o amor deixa de ser desculpa e se torna caminho.
Quando o espelho não assusta. Revela.
Sóentão, talvez, Deus possa ser visto.
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