Maude Salazar

HITLER EM NÓS MESMOS

HITLER EM NÓS MESMOS
(ou: o monstro nunca foi só ele)
por Maude Salazar
Hitler não nasceu do nada.
Ele brotou de um solo que o aplaudiu de pé, antes de se horrorizar ajoelhado.
Ele não invadiu uma Europa inocente, foi chamado, desejado, obedecido.
E quando caiu, caímos juntos, ainda que muitos prefiram esconder-se sob os escombros da própria covardia.
Max Picard escreveu sem anestesia: o mal não é um acidente da história, é uma possibilidade humana.
E o mais perigoso é que ele se veste de normalidade, se senta à mesa, prega sermões e vende seguros de vida.
Não precisa de bigode nem de suástica.
Precisa apenas de silêncio cúmplice, de conveniência, de medo mascarado de moral.
O Hitler em nós não grita.
Sussurra.
Diz "sou só um patriota", "defendo a ordem", "protejo os valores".
Começa limpando a língua, depois purifica a vizinhança, depois arranca livros das estantes, corpos das casas, e ideias do pensamento.
Tudo em nome da "segurança".
Há quem diga: "Mas eu nunca faria aquilo."
Mentira elegante.
Todos temos o potencial de obedecer à ordem absurda se ela vier com verniz de autoridade e promessa de estabilidade.
Picard sabia: a bestialidade mora nos corredores da alma vazia de silêncio.
Aquela que trocou contemplação por consumo, presença por performance.
Aquela que prefere um ditador carismático a um espelho honesto.
Aquela que foge de Deus, porque no fundo sabe que Deus não compactua com o mercado da brutalidade.
Hitler não foi um surto. Foi um sintoma.
E se não curarmos a raiz, voltará com outras roupas, outras siglas, outras hashtags.
A pergunta nunca foi como Hitler chegou ao poder.
A pergunta é: por que tanta gente o deixou entrar?
E mais ainda:
o que em mim, agora, ainda o deixaria passar ?
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